sexta-feira, 15 de junho de 2012

Aves




Canta, pájaro lejano…
-¿en qué jardín, en qué campo?-
Yo estoy aquí, solitario,
en la penumbra del cuarto,
Juan Ramón Jiménez


Dormira por muitos anos. Dormia, e dormida baloiçava berços e cantava estranhas cantigas de embalar ausentes. Às vezes sonhava com sintagmas impossíveis e dormida sorria de tanto caos, mas ao amanhecer a sintaxe cortava-lhe as asas. Foi assim até ao dia em que o pássaro longínquo aninhou nos seus olhos. Um pássaro inverosímil de canto exponencial. Não soube que estação traria o seu som, mas reconheceu o odor familiar do vento cálido que o aproximava. O vento do verbo no princípio.

Talvez num tempo longínquo eu própria tenha sido uma ave, pensou. A língua dele é-me própria, como outono do caqui. Quando não dava por nada, parecia-lhe ouvir a suas palavras noturnas na garganta alada. Nunca me contou quando aconteceu o pássaro. Talvez tivesse sido sempre assim e cada noite ela cegasse as palavras em cópulas temperadas com desatino, e cada manhã, após a morte noturna, esquecia a sua língua original para a poder reconhecer vagamente num canto longínquo e acolhedor.