sábado, 28 de novembro de 2009

calar para crescer

eu sei que calas para crescer. sei que enches silêncios com pequenos retalhos de passados, presentes e futuros enquanto eu encho o tempo com palavras para te dar tempo a criar silêncios. minha palavra corrente não é surda. é apenas um jeito de disfarçar os olhos que te olham pela calada sem perder o fio das mãos que apertam os tempos idos, as seguranças que já foram, os adeuses.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

manifesto em favor das tartarugas

olhos que passeiam devagar sobre letras que dançam, braços que nunca mais chegam, mãos que encerram segredos que abrem lentos como um lótus enquanto as pessoas passam ao lado sem dar por nada, pela beleza da calma, pelas pálpebras grandes que fazem sentir os olhos lentos, não, calmos, não, lentos. lentos mesmo. quero reclamar da lentidão, escrever um manifesto em favor das tartarugas, uma faixa para recuperar o valor dos caracóis, um cheiro de chuva que me faça lembrar as minhocas no seu demorado anonimato. toda a liberdade tem um preço, a da calma não foge à regra nestes dias sem direito a ela. o chão custa tanto a atravessar, o ar tanto a cortar, a água tanto a nadar. mergulhar no silêncio é o preço de não acompanhar os tempos, tudo perfeito mas atrasado, tudo é nada, nada presta, nada serve se não é a horas.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

às vezes

às vezes acontece um raio nas costelas e a vida  torna-se uma encosta
ás vezes é preciso um silêncio que só cabe numas mãos vazias
às vezes era bom gritar mas o canto do cisne é lento
às vezes dançar é uma mentira interior
às vezes amar fica tão longe
às vezes ser tão fraca
às vezes não ser

terça-feira, 10 de novembro de 2009

David e Golias

a distância entre a calma e o tormento
tem o comprimento de um olho
e a largura de um ponto de vista

saltamos da praia ao abismo
por menos de 10ºC e uma isóbara perdida
corremos da fúria para o riso
por um dá cá esse satélite

a distância entre a derrota e o sucesso
tem o tamanho de um calhau
e o peso da fé e o desespero

todo o David tem seu Golias
todo o Golias tem sua pedra
toda a pedra tem seu David e seu Golias

domingo, 8 de novembro de 2009

palavras velhas, coisas gastas

já gastámos as palavras pela rua, meu amor
Eugénio de Andrade

o último a mergulhar é uma coisa velha
Nuno Camarneiro


palavras velhas, coisas gastas
coisas gastas em palavras velhas
como o rancor o medo as paixões que ocupam tanto

é preciso enxotar as coisas gastas as palavras velhas
abrir as cancelas não basta
é urgente um urro um pontapé no chão
que rebente do centro como um coração transbordado
e percorra sem tempo todas as distâncias possíveis
desabando o chão de todas as gramáticas
que alguma vez ousaram pôr ordem nas palavras

é preciso espaço para poder abrir as mãos
e pegar no imprescindível como se uma guerra
e não olhar para trás como se um futuro
e não arrastar o corpo como se uma morte

é urgente abrir janelas para a lufada
e cancelar as contas com o mau-olhado
e não olhar para o lado como se nada
e não calar a boca como se tudo

quero ver as coisas gastas como palavras velhas
a encher a rua em desafio
quero ver ecopontos sem cor para as coisas sem cor que já sabemos de cor
e salteadas como um eco velho e gasto
quero ver a gente toda a despedir camiões sobrelotados de passado
felizes e leves dizerem adeus sem lenço nem pena
talvez com um gosto de cuspe que já foi
e alívio ao dar pela falta do que já não presta

quero ver a gente a encher a rua para fazer lugar para um sorriso largo

é preciso caminhar a passo novo

é urgente amassar um novo pão

sábado, 7 de novembro de 2009

inventário de recusas

desdobro as folhas do cardápio
em que cada manhã se me apresenta a vida
com a disciplina própria de um mestre zen
cada dedo agente total do movimento
esse quê de lentidão que aproxima a elegância e a velhice
a consciência dos membros
o mimo ao cortar o ar das estâncias que atravesso
a caminho do duche e o pequeno-almoço

sento na cozinha em calma e penso que
pouco ou nada resta daquela falta de jeito
com que tomava chá e decisões
deitando líquido no tapete ou engasgando com a torrada
escorregando nos casamentos ou nas casas habitadas
onde sempre andei nua, descalça e sem licença

perdi o jeito para as quedas, é verdade
nomeadamente em grupo e com data fixada num cartório
em troca ganhei em solidão, noites, letras e amizades fracas.

agora tento apenas manter a disciplina do sossego
e um breve inventário de recusas
reunido com a licença que me dão os anos:

recuso-me por igual a
chorar passados e perseguir submarinos
calar os erros e ignorar os dons
aguentar até ao fim uma tarde ao sol e uma má leitura
tratar gente sem olfacto para fronteiras e deitar pérolas aos porcos
tratar da chuva no Verão e dar conselhos a quem não pediu

recuso-me também por razões de ordem maior
a procurar palavras que substituam murros
derrubar muros que nunca lá houve
caçar borboletas, adoptar cães vadios
e trocar fraldas a crescidos.

vidas pequenas (III)

é preciso atravessar o deserto da solidão sem miragens de companhia; é tão fácil o tacto tornar-se uma ilusão que se esvai ao abrir os olhos de verdade, os olhos profundos que habitam o cordão por onde um dia fomos um, o umbigo que assinala essa união impossível, esse misto de aconchego, calor, alimento.

a vida é agora esta moradia com crianças a brincarem no jardim. não é altura de trancar as portas, nem de ficar de janelas abertas até ver o vento entrar e arrastar tudo, papéis, lençóis, peças de loiça antiga, reviver essa desolação das janelas sem dono ou mãe que as feche para guardar a casa do frio, do acaso, do azar.

longe dos dias em que as chaves ficaram ao critério dos viajantes, hoje sei que não está na mão de quem passa compreender as casas que dormem, as janelas fechadas à noite, as cadeiras com espaldar para não cairmos de costas no nosso próprio chão.

aqui restamos num quê de naufrágios que ficaram para trás, esse ar de capitães calejados pelo valor de um golpe de leme quando há que salvar a vida, pela beleza da calma que nos diz que há um amor estranho e morno nas mãos que verificam chaves, caixilhos, persianas, pés fora do cobertor, temperaturas, sonos tranquilos, água pronta para caso de sede à noite. tudo se torna grande quando as vidas são pequenas.

e é esse amor estranho quem decreta portas e janelas, horas de abertura e encerramento, tamanho das coisas, importâncias e miudezas, choros, mimos, frutas e sopas, é assim que a gente dá os passos no deserto, assim que arranja diariamente a sua pequena vitória vitória, acabou a história, avança para a cama vazia na certeza sossegada de nela esperarem apenas águas calmas e sono.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

há palavras

há palavras que ganham para sempre uma sonoridade velha

há palavras que ganham rugas assim de repente e sem anúncio

(não há razão que justifique machucar uma palavra)

são palavras que viveram vidas anónimas até ao dia d

em que passaram a fazer parte do nosso dicionário pessoal


quem já teve dias d

compreende porque é que às vezes

é melhor a iliteracia

que alguns cantos da memória

sabe que o dia d só morre de morte temporária

ressuscitando cada vez que a palavra velha é pronunciada

por um acaso, numa escada, na rua, no autocarro

para de novo tornar-se palavra-passe

e percorrer as nossas vísceras

até olhamos para os lados

pelas dúvidas

porque assim como não podemos

desaprender as letras

ou as constelações

também depois dessas palavras

o céu nunca mais é o caos

e os caminhos nunca mais são inocentes

tsunami

um golpe de liberdade pode bater nas nossas caras com a força de um tsunami.

é preciso estar atentos aos sinais do mar, do céu.

é preciso perceber que os nossos sonhos são nossos e neles podemos criar o mundo.

é preciso saber que podemos escolher viajar ao lombo de um dragão que saiba ler o segundo prévio aos nossos pensamentos, esse espaço de nascença, o embrião do desejo.

é preciso recuperar o poder sobre leme que precede as palavras, esses cortes na realidade.

é preciso acreditar em nós, na vida aquém da nascença e o verbo.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

vidas grandes, vidas pequenas (II)

entrou na loja de roupas, precisava de deitar fora tudo o que lhe fazia lembrar o passado. nem sequer percebia como podia ter acreditado assim, piamente, como uma beata perante o padre, no que só era miragem. deve ser a sede que nos faz ver o que não há, caminhar até águas que nunca lá houve. talvez o oásis exista algures, mas com certeza não no lado do deserto que ela tinha transitado. avançou para a zona dos vestidos. nos últimos tempos tinha sido o desleixo, a roupa a transparecer a casa despejada que lhe ficara dentro, tudo entregue a umas mãos sem fundo. amar um nómada, que ideia louca. queria voltar para casa interior, a lareira do peito, a morada íntima que tinha perdido no meio dos papéis dos outros. do outro, aliás. silêncio. a voz era a dele, ao certo. nos altifalantes uma entrevista na rádio, um novo álbum, novas músicas. suspirou. nem sequer lhe restavam uns trocos de ódio que gastar com ele, coitado, não sabia mais. que tristeza precisar da dor para ganhar a vida, não há casa possível para os corações em trânsito. depois dos vestidos ela ia voltar a uma casa cheia de coisas pequenas, cozinha, loiça, conversas, abraços, perdão. depois dos microfones, ela sabia, havia apenas um hotel, um copo, uma garrafa de whisky.

vidas grandes, vidas pequenas

I

encheu o copo de novo. afinal, quem ia perceber. celebrava o concerto, tinha corrido bem. essas músicas novas estavam a funcionar como nos tempos antigos. lembrou-se dela nessa lentidão do álcool, o cansaço e a memória ingrata. coitada, mas ela pensara mesmo que aquilo podia dar certo? conheceram-se numa noite como aquela, num hotel como aquele. ou nem por isso, já nem se lembrava. continuava a espantá-lo a ingenuidade das pessoas. não era culpado de escrever canções, aquela beleza melancólica, aquelas relações inesperadas entre palavras hospedadas numa casa onde a madame era o whisky. quem manda os outros confundirem a arte e as pessoas, o cu com as calças? apesar de tudo tinha conseguido reviver as notas através do corpo e os gestos dela, aquela beleza calma nos olhos grandes, nas mãos de dedos longos. ele, que na altura começava a entrar na lotaria obscura do 'o que foi de...?', o cabelo grisalho como os últimos anos de insucesso. no entanto, a presença dela tinha ressuscitado qualquer coisa de vivo, ele que tentava há anos um suicídio lento, uma agonia interminável. aquelas canções tinham uma porção dela, coitada, sua inocente, acabara por fugir do lado dele, vazia de tanto se dar. mas de novo era a vez das perdas e os ganhos, dos efeitos colaterais, é sempre assim, inevitavelmente. onde estaria ela agora? esta vida grande, tem que ser... encheu o copo de novo. afinal, quem ia saber.