sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

não

não grito porque o contorno da noite me limite
não bebo porque o vidro me arrefeça os lábios
não mordo porque os dentes procurem casa nova
não caminho porque os pés desenhem socas

grito porque a vida me segue os passos e não sei levá-la ao colo
bebo porque a língua se sente só no berço da palavra
mordo porque os dias passam e os bocados fogem sem delongas
caminho porque os dedos me tangem as cordas do presente

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

a calma da presa

Desfazem-se os gestos que procuraram olhos. Bom saber da calma, não prévia ou posterior à caçada, mas a que nunca pensou perseguir, disparar, comer. A calma da presa que faz sua vida, cheira, toma banho, lê, caminha pelos trilhos à beira do rio, pelas rochas à beira-mar sem dar pela presença do olho nunca satisfeito, esse germe onde poderia nascer a guerra, a música, um grito ou o amor mais rotundo de sempre, quem sabe.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

roucura

Explicar con palabras de este mundo
que partió de mí un barco llevándome

Alejandra Pizarnik, Árbol de Diana

Como as gotas se confundem no oceano assim as palavras não têm limites que socorram: é preciso margem onde agarrar os alicerces da memória, remédio fronteiriço que nomeie as maleitas e as anule, exorcismo à maneira de bóia, queda que mate as vertigens, silêncio gritado até à roucura.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

ela e ela

apagar o sangue que ferve não é
o mesmo que apagar os olhos antes
de o sangue começar a aquecer

mas se correres correres correres
ao pé da amiga e lhe disseres exausta

"diz-me algo bonito é uma emergência"

e ela diz

"vamos passear" ou
"linda" ou
"que dia tão bonito" ou

não diz mas olha
com olhos de dizer

então o sangue dilui
em todos os anos anteriores
os parques os passeios as conversas
os silêncios as escutas demoradas

sem ela perguntar razões

pois ela sabe que
as razões fazem ferver o sangue
e a palavra nova rebenta no jardim do silêncio

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Uma mulher que não sonha

Uma mulher que não sonha
porque não precisa
porque se quisesse eram flores nos afetos
jardins de passeio demorado
rosas ajardinadas com as brisas do tacto
ombros podados com dentes pequenos
cabelos mergulhados entre os seios
costas aradas
chuva de gemas na coluna
olhos deslizando nos braços

Uma mulher que não sonha
porque sonhar é para que
lhe cresçam tulipas que agasalhem a visão
lhe desçam as mãos em jeito de relva
lhe sintam o sol do olhar pequeno
lhe aqueçam o sorriso adormecido

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

el pan de cada día

sentir
que no pasa nada aunque pase todo
el abrazo que falta
sentir que todo está bien
aun cuando todo esté mal
y ausente y solo

sentir que hay alguien cerca
aunque no veas nada

sentir un abrazo como cama de abuela
la infancia ese milagro perdido
donde fuimos alguien sin ser nadie

el adios la nada lo negro el fin y el principio
todo es lo mismo
nosotros
una mota de polvo
esperando que el viento pare a descansar su ira

sentir que somos de alguien o algo
no identidad mas pertenencia
diluirnos en el líquido amniótico
del caos o el cosmos
y dejar que pasen los meses para que todo
vuelva a su lugar
para que vuelva a nosotros el reino
y el pan de cada día
con manos, ojos, dientes
para encarar la mañana
y el desconcierto
los esperados adioses
y el presente
ese cretino que nos empuja
a querer seguir viviendo