terça-feira, 7 de dezembro de 2010

era

era o que lá se tinha feito até então
um entrar e sair de almas
na correnteza dos dias
uma porta que se batia
outra que encostava
viagens e vaivéns
rumor de quem tenta abrir e não consegue
uns para sairem pela vida fora
outros para entrarem pela alma dentro
até à cozinha
e sem licença

e outros
que valiam a pena
ali à espera de um olhar ao encontro
os sorrisos francos
as mãos abertas
os corações pacientes

e os olhos.
os dela esquecidos
do que havia de vir
do que podia ser, ainda
do que estava a ser sem dar por nada
esquecidos do possível
improvável mas com os diabos possível
lembrados apenas do que nunca foi
a saudade que é mania
de olhar para o que falta
e a vontade a força de vontade
de virar o pescoço e ir ao encontro
do presente o que há
a cócega
o riso
o lilás
as mãos macias
o frio de manhã
que nos acorda para o que somos
para o que podemos ser
o hoje que nos bate no rosto
e nos faz lembrar
que tudo começa
a cada instante
daqui a pouco
é quase

domingo, 14 de novembro de 2010

contributo

afinal de contas é tudo tão simples. quem conta um conto faz crescer os dentes e acrescenta um ponto. e assim eis-me pronta. pronta-a-colocar dois X romanos na carta de condução, no direito ao voto, na carta sem condição, no direito ao colo. pronta-a-aceitar meu contributo para o bem e o mal próprio e alheio, para as melhoras, para as pioras, para as pontes e as quedas, para as falésias e os caminhos, alguns céus, vários infernos, as mudanças, os encontros, as chamadas feridas, as entradas, as saídas, o segundo sol, as segundas chuvas, os segundos frios, as memórias baças, fracas, perdidas, os adeuses, os vivas, a cordura, o delírio, o choro, o fado, a moda, a sorte, a vontade, o destino.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

celebro

celebro

celebro porque estuve muerta
y he resucitado
porque estuve seca
y bebo
y humedezco
y vivo
y viva crezco

celebro

celebro porque hay oscuridad y lluvia para todos
los gustos y los disgustos las luces y las sombras
porque tejen las arañas su esperanza
de una mosca despistada
y las comprendo

celebro

celebro porque tocar es tan bello
incluso cuando no se toca
incluso cuando se toca el invierno

celebro

celebro porque es hoy
y decir no duele
y escuchar no marchita

celebro, celebro, celebro

celebro porque alumbrar el día
es cosa de otros
y así puedo yo recibir el sol
por la mañana
y desperezar mis esperanzas
y desmantelar mis mentiras
y organizar mis gozos
y ensañarme con mis sueños

celebro

se encostas

quem pediu asas

não percebo nada de nuvens
muito menos cores

ah as pombas essas armadilhas

o papo enche-se no chão
e grão a grão

por isso
seja como for
se encostas
deves saber que
não será ao passado
não será às Itacas
não será de graça

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

ser

escrevo no que escrevo
como sou a que sou
não tenho língua nem bandeira
tão-só um caminho
à noite é o luar
de dia é o sol

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

acima de pedra

o que hei de eu fazer se
acima de pedra
tudo me dá ternura
e mesmo a pedra mais simples
de todas as pedras
a mais pisada anônima trabalhada
(o tempo pode ser arte maior)
é minha noiva viva e à espera de festas

o que hei de eu fazer se
sei que os cadernos são cemitérios
e não conheço corpos
apenas olhos
nem sexos
apenas dedos

terça-feira, 31 de agosto de 2010

anomía

alguien se oculta callado en un recodo
habita estancias del cerebro
sin anunciarse aparece y se sienta
desliza un pie y corta un lazo
desde hace tiempo que noto
que alguien desordena estas letras

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Carta a adília lopes

querida adília
se soubesses
que só me convidavam mesmo para dançar
numa cama ou num carro
com músicas que não me pertenciam
se soubesses
que eu também sou inteligente suficiente
para saber que é preciso ser bonita
mas depende para quê
porque deus não me deu gatos
mas infelizmente me deu namorados
alguns negros outros brancos
mas todos martírios quase todos criminosos
que me fizeram mil maldades
e uma maldade muito grande

se soubesses
que tive que mandá-los todos embora
com sete pedras na mão
e mais de um pontapé
por causa daquela maldade muito grande
mas tão grande que cresceu degrau a degrau
como um poema não raciocinado
até ganhar a forma do meu corpo
e agarrar a minha alma e rasgá-la
em pedaços que depois guardei na cesta dos trapos
para fazer um vestido para a minha filha
não precisar de homens poços gatos

querida adília
se soubesses que apesar de inteligente
da entropia não percebo nada
e talvez seja por isso que
não me restam energias
para precisar de namorados

onde já não estou

convenhamos que sou alice sim
mas não esperes que habite o outro lado do teu espelho

tanto faz se nele há
futebol ou
livros ou
dados ou
computadores ou
nomes de familia ou
um preservativo usado ou
uma luta social qualquer ou
uma fotografia da tua mãe

esquece


se me procuras
estou no cheiro da cozinha depois do almoço
e do quarto e da casa de banho sujos de manhã
no jeito da roupa estendida na varanda
nos restos do jantar
nos desenhos junto do telefone
no que fica no carro ao sair
é lá que eu estou
habitando o que resta
dos cheiros
e as palavras

domingo, 29 de agosto de 2010

CAER

I

caer caer caer
extender las manos y tocar
el líquido límite entre el yo y el espejismo

y caer caer caer
hacia ningún punto cardinal
no hay arriba o abajo
no hay dentro o fuera
sólo una nada donde nace todo
y todo es nada

caer caer caer
dirigirse a la eclosión
de lo conocido
sentir el vértigo
sentir el corazón encogerse
y no intentar asirse
porque la única asa verdadera
es la caída

II

caer caer caer
sentarse junto al pozo del pasado
mojar la mano en el gélido fondo de los miedos

cerrar los ojos
respirar lento
confiar en la calma de las aguas
sumergir el pie de más dolores
hasta el fondo

cerrar los ojos
respirar lento
recibir al frío con todos los honores
abriéndole camino hasta el hueso

cerrar los ojos
respirar lento
asentar el pie herido sobre el fondo
amar el lodo porque es caricia
amar la piedra porque es suelo

y aún cerrados los ojos
respirar lento
caminar caminar caminar sabiendo
que el agua siempre ampara la caída
y renueva nuestros sueños

III

caer caer caer
caer pero sobre la cama
taparse con los miedos
sacudirse el frío con recuerdos
vivir en el presente pero ay el presente
qué lleno pero qué falto
qué libre pero qué estrecho
qué bueno pero qué amargo
la tristeza ese lujo
de no vivir el hoy ni el mañana
la esperanza los ojos de lo que no es
el miedo a los adioses al silencio
a todo lo que hubo lo que fue
el deseo esa nave desangrada
la ausencia esa mano al relente
y la noche la noche la noche
que ya se cierne

IV

caer caer caer
en la cuenta de la lechera
en el regazo del encantador de serpientes
en el cuento de la cenicienta

V

caer caer caer
en las garras del pasado
agua que se escapa por los dedos por los pelos
la añoranza esa tirana
la prueba de la fruta esa condena
la ternura esa promesa inconclusa
el olor de unas manos
que no llegarán a tocarme
mi dentro está tan lejos
quiero caerme dentro hasta sentir de nuevo
nacer de nuevo
qué libro prohibió el tacto
qué sentencia pronunció la soledad
el encuentro con el mar oscuro
me siento sobre el suelo y abro
mi pobre caja de Pandora y esparzo
las cenizas las caracolas las piedras y los palos
quién ordenará mis sueños
cómo colocar ahora los recuerdos
para no caer caer caer
de nuevo en la amargura
en el silencio


VI

caer caer caer
sobre el mismo suelo
bajo la misma lluvia
levantarse sin manos sin pies
sin los ojos las venas los cinco sentidos
sin nada que pueda derribarme de nuevo
sin pies para pisar manos para parar
sin suelo sin cielo sin delante y detrás
sin ahora sin antes sin después
sin bocas esperando mi derrota
tan sólo caer caer caer
cerrar los ojos
y olvidar

segunda-feira, 19 de abril de 2010

humildade

é preciso
não procurar
além do que já há

é urgente
ficar-se pelo aquém das coisas
porque é aquém de tudo
que se encontra o verdadeiro
além

tão urgente
não ter intenções
apenas habitar os segundos
demorar-se na elaboração
de um ovo estrelado
ou um doce de cenoura canela e nozes
por igual
fazer a vida sem plateia
ficar a olhar para as crianças
e não escrever nada
nem isto

mas sobretudo
nunca nunca esquecer que
os olhos são para olhar
as mãos para acariciar
as palavras para amar

sábado, 17 de abril de 2010

amniótico

sentir o mundo nutriente
amniótica valsa dos sorrisos e as mãos
parede líquida
ondas lançadas atingem
olhos que se acendem
tudo o que faz crescer
o que connosco cresce
nada de novo e contudo
tudo novo
tudo arte de criar uma disposição
amorosa com o mundo
com a parte do mundo que somos
arte dos seis sentidos
e os cinco pontos cardeais
arte de mergulhar
de ser o mergulho mesmo
de ser-se
raios de sol silentes algas peixes
água coral pessoa praia sal

sábado, 3 de abril de 2010

domingo, 28 de março de 2010

o poema não cabe na realidade

A realidade não cabe no poema
Ferreira Gullar




o poema é que não cabe na realidade

a realidade infalível e regulada
a realidade trânsito-de-coisas-e-pessoas
a realidade olho-que-classifica
a realidade mãos-que-acreditam-no-tacto

o poema falhado e indirigido
o poema liga-coisas-e-pessoas
o poema borbulha-que-atravessa-grades
o poema mãos-que-sentem-sem-tocar

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

não

não grito porque o contorno da noite me limite
não bebo porque o vidro me arrefeça os lábios
não mordo porque os dentes procurem casa nova
não caminho porque os pés desenhem socas

grito porque a vida me segue os passos e não sei levá-la ao colo
bebo porque a língua se sente só no berço da palavra
mordo porque os dias passam e os bocados fogem sem delongas
caminho porque os dedos me tangem as cordas do presente

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

a calma da presa

Desfazem-se os gestos que procuraram olhos. Bom saber da calma, não prévia ou posterior à caçada, mas a que nunca pensou perseguir, disparar, comer. A calma da presa que faz sua vida, cheira, toma banho, lê, caminha pelos trilhos à beira do rio, pelas rochas à beira-mar sem dar pela presença do olho nunca satisfeito, esse germe onde poderia nascer a guerra, a música, um grito ou o amor mais rotundo de sempre, quem sabe.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

roucura

Explicar con palabras de este mundo
que partió de mí un barco llevándome

Alejandra Pizarnik, Árbol de Diana

Como as gotas se confundem no oceano assim as palavras não têm limites que socorram: é preciso margem onde agarrar os alicerces da memória, remédio fronteiriço que nomeie as maleitas e as anule, exorcismo à maneira de bóia, queda que mate as vertigens, silêncio gritado até à roucura.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

ela e ela

apagar o sangue que ferve não é
o mesmo que apagar os olhos antes
de o sangue começar a aquecer

mas se correres correres correres
ao pé da amiga e lhe disseres exausta

"diz-me algo bonito é uma emergência"

e ela diz

"vamos passear" ou
"linda" ou
"que dia tão bonito" ou

não diz mas olha
com olhos de dizer

então o sangue dilui
em todos os anos anteriores
os parques os passeios as conversas
os silêncios as escutas demoradas

sem ela perguntar razões

pois ela sabe que
as razões fazem ferver o sangue
e a palavra nova rebenta no jardim do silêncio

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Uma mulher que não sonha

Uma mulher que não sonha
porque não precisa
porque se quisesse eram flores nos afetos
jardins de passeio demorado
rosas ajardinadas com as brisas do tacto
ombros podados com dentes pequenos
cabelos mergulhados entre os seios
costas aradas
chuva de gemas na coluna
olhos deslizando nos braços

Uma mulher que não sonha
porque sonhar é para que
lhe cresçam tulipas que agasalhem a visão
lhe desçam as mãos em jeito de relva
lhe sintam o sol do olhar pequeno
lhe aqueçam o sorriso adormecido

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

el pan de cada día

sentir
que no pasa nada aunque pase todo
el abrazo que falta
sentir que todo está bien
aun cuando todo esté mal
y ausente y solo

sentir que hay alguien cerca
aunque no veas nada

sentir un abrazo como cama de abuela
la infancia ese milagro perdido
donde fuimos alguien sin ser nadie

el adios la nada lo negro el fin y el principio
todo es lo mismo
nosotros
una mota de polvo
esperando que el viento pare a descansar su ira

sentir que somos de alguien o algo
no identidad mas pertenencia
diluirnos en el líquido amniótico
del caos o el cosmos
y dejar que pasen los meses para que todo
vuelva a su lugar
para que vuelva a nosotros el reino
y el pan de cada día
con manos, ojos, dientes
para encarar la mañana
y el desconcierto
los esperados adioses
y el presente
ese cretino que nos empuja
a querer seguir viviendo

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

abaixo de zero

é possível sobreviver em formato de caveira
respirar o vento gélido que sopra nos ossos da cela interior
o coração atravessado de delírio
nada serve já nem adianta
o rosto os olhos tudo lonjura
o corpo afastado da idade
a solidão essa água mole em pedra dura
essa ilha onde tudo machuca o peito
tudo se torna tã-tã de guerra
tudo onda leve que cresce em tsunami
a vida manifesta apenas num bater acelerado
a alma abaixo de zero
o com-tacto, o sem tacto, lábio nem mão
o hálito frio da loucura sussurando dentro
o cânone fatal

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

a casa dos adeuses

tentar a calada dos olhos
a luz pela boca
era muito mais

do que a cegueira
podia evitar

quem pode ver além da sua própria floresta?

quem pode ultrapassar com pés de barro
a fronteira do trovão?

quem sabe onde ficam os sonhos
depois do deserto?

e sobretudo: quem mandou alguém sonhar?

a sede nunca pariu bons conselhos
a fome não percebe de carinho
é melhor pegar nas malas
e voltar para a casa dos adeuses
onde não faz tanto frio
e as bocas nunca erram o alvo