domingo, 20 de dezembro de 2009

canção de embalar

sonha lindo asas de água

sonha lindo peito de pão

sonha lindo que nos teus braços

corre o vento e encosta o mar


sonha lindo

sonha lindo


desfralda o coração


sonha lindo enxota os medos

deixa eu pegar a tua mão

as coisas acontecem sem nome

as coisas acontecem sem nome

nascem atrás dos olhos sem darmos por elas

vivem lá a vida delas

até que um dia acordamos

do sonho da palavra divisória

e sonhamos

os nomes os olhos e as partes de trás

outros lugares outras gentes

a quem nunca daremos a mão

por longe ou por perto de mais

por nós ou por elas

por tudo e por nada

por tanto e por tão pouco

portanto

porquê

domingo, 6 de dezembro de 2009

apanhar o jeito

apanhar o jeito do silêncio
compreender os lábios quietos

não é questão de afeição
mas de teimosia

caminhar pelo trilho
da calada do dia é um direito

ouvir o eco voltar também

há um caminho longo até
saber que compreender
não significa aceitar
e que a palavra
é uma viagem de ida e volta
num comboio que quase nunca
sabe para onde parte

sábado, 28 de novembro de 2009

calar para crescer

eu sei que calas para crescer. sei que enches silêncios com pequenos retalhos de passados, presentes e futuros enquanto eu encho o tempo com palavras para te dar tempo a criar silêncios. minha palavra corrente não é surda. é apenas um jeito de disfarçar os olhos que te olham pela calada sem perder o fio das mãos que apertam os tempos idos, as seguranças que já foram, os adeuses.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

manifesto em favor das tartarugas

olhos que passeiam devagar sobre letras que dançam, braços que nunca mais chegam, mãos que encerram segredos que abrem lentos como um lótus enquanto as pessoas passam ao lado sem dar por nada, pela beleza da calma, pelas pálpebras grandes que fazem sentir os olhos lentos, não, calmos, não, lentos. lentos mesmo. quero reclamar da lentidão, escrever um manifesto em favor das tartarugas, uma faixa para recuperar o valor dos caracóis, um cheiro de chuva que me faça lembrar as minhocas no seu demorado anonimato. toda a liberdade tem um preço, a da calma não foge à regra nestes dias sem direito a ela. o chão custa tanto a atravessar, o ar tanto a cortar, a água tanto a nadar. mergulhar no silêncio é o preço de não acompanhar os tempos, tudo perfeito mas atrasado, tudo é nada, nada presta, nada serve se não é a horas.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

às vezes

às vezes acontece um raio nas costelas e a vida  torna-se uma encosta
ás vezes é preciso um silêncio que só cabe numas mãos vazias
às vezes era bom gritar mas o canto do cisne é lento
às vezes dançar é uma mentira interior
às vezes amar fica tão longe
às vezes ser tão fraca
às vezes não ser

terça-feira, 10 de novembro de 2009

David e Golias

a distância entre a calma e o tormento
tem o comprimento de um olho
e a largura de um ponto de vista

saltamos da praia ao abismo
por menos de 10ºC e uma isóbara perdida
corremos da fúria para o riso
por um dá cá esse satélite

a distância entre a derrota e o sucesso
tem o tamanho de um calhau
e o peso da fé e o desespero

todo o David tem seu Golias
todo o Golias tem sua pedra
toda a pedra tem seu David e seu Golias

domingo, 8 de novembro de 2009

palavras velhas, coisas gastas

já gastámos as palavras pela rua, meu amor
Eugénio de Andrade

o último a mergulhar é uma coisa velha
Nuno Camarneiro


palavras velhas, coisas gastas
coisas gastas em palavras velhas
como o rancor o medo as paixões que ocupam tanto

é preciso enxotar as coisas gastas as palavras velhas
abrir as cancelas não basta
é urgente um urro um pontapé no chão
que rebente do centro como um coração transbordado
e percorra sem tempo todas as distâncias possíveis
desabando o chão de todas as gramáticas
que alguma vez ousaram pôr ordem nas palavras

é preciso espaço para poder abrir as mãos
e pegar no imprescindível como se uma guerra
e não olhar para trás como se um futuro
e não arrastar o corpo como se uma morte

é urgente abrir janelas para a lufada
e cancelar as contas com o mau-olhado
e não olhar para o lado como se nada
e não calar a boca como se tudo

quero ver as coisas gastas como palavras velhas
a encher a rua em desafio
quero ver ecopontos sem cor para as coisas sem cor que já sabemos de cor
e salteadas como um eco velho e gasto
quero ver a gente toda a despedir camiões sobrelotados de passado
felizes e leves dizerem adeus sem lenço nem pena
talvez com um gosto de cuspe que já foi
e alívio ao dar pela falta do que já não presta

quero ver a gente a encher a rua para fazer lugar para um sorriso largo

é preciso caminhar a passo novo

é urgente amassar um novo pão

sábado, 7 de novembro de 2009

inventário de recusas

desdobro as folhas do cardápio
em que cada manhã se me apresenta a vida
com a disciplina própria de um mestre zen
cada dedo agente total do movimento
esse quê de lentidão que aproxima a elegância e a velhice
a consciência dos membros
o mimo ao cortar o ar das estâncias que atravesso
a caminho do duche e o pequeno-almoço

sento na cozinha em calma e penso que
pouco ou nada resta daquela falta de jeito
com que tomava chá e decisões
deitando líquido no tapete ou engasgando com a torrada
escorregando nos casamentos ou nas casas habitadas
onde sempre andei nua, descalça e sem licença

perdi o jeito para as quedas, é verdade
nomeadamente em grupo e com data fixada num cartório
em troca ganhei em solidão, noites, letras e amizades fracas.

agora tento apenas manter a disciplina do sossego
e um breve inventário de recusas
reunido com a licença que me dão os anos:

recuso-me por igual a
chorar passados e perseguir submarinos
calar os erros e ignorar os dons
aguentar até ao fim uma tarde ao sol e uma má leitura
tratar gente sem olfacto para fronteiras e deitar pérolas aos porcos
tratar da chuva no Verão e dar conselhos a quem não pediu

recuso-me também por razões de ordem maior
a procurar palavras que substituam murros
derrubar muros que nunca lá houve
caçar borboletas, adoptar cães vadios
e trocar fraldas a crescidos.

vidas pequenas (III)

é preciso atravessar o deserto da solidão sem miragens de companhia; é tão fácil o tacto tornar-se uma ilusão que se esvai ao abrir os olhos de verdade, os olhos profundos que habitam o cordão por onde um dia fomos um, o umbigo que assinala essa união impossível, esse misto de aconchego, calor, alimento.

a vida é agora esta moradia com crianças a brincarem no jardim. não é altura de trancar as portas, nem de ficar de janelas abertas até ver o vento entrar e arrastar tudo, papéis, lençóis, peças de loiça antiga, reviver essa desolação das janelas sem dono ou mãe que as feche para guardar a casa do frio, do acaso, do azar.

longe dos dias em que as chaves ficaram ao critério dos viajantes, hoje sei que não está na mão de quem passa compreender as casas que dormem, as janelas fechadas à noite, as cadeiras com espaldar para não cairmos de costas no nosso próprio chão.

aqui restamos num quê de naufrágios que ficaram para trás, esse ar de capitães calejados pelo valor de um golpe de leme quando há que salvar a vida, pela beleza da calma que nos diz que há um amor estranho e morno nas mãos que verificam chaves, caixilhos, persianas, pés fora do cobertor, temperaturas, sonos tranquilos, água pronta para caso de sede à noite. tudo se torna grande quando as vidas são pequenas.

e é esse amor estranho quem decreta portas e janelas, horas de abertura e encerramento, tamanho das coisas, importâncias e miudezas, choros, mimos, frutas e sopas, é assim que a gente dá os passos no deserto, assim que arranja diariamente a sua pequena vitória vitória, acabou a história, avança para a cama vazia na certeza sossegada de nela esperarem apenas águas calmas e sono.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

há palavras

há palavras que ganham para sempre uma sonoridade velha

há palavras que ganham rugas assim de repente e sem anúncio

(não há razão que justifique machucar uma palavra)

são palavras que viveram vidas anónimas até ao dia d

em que passaram a fazer parte do nosso dicionário pessoal


quem já teve dias d

compreende porque é que às vezes

é melhor a iliteracia

que alguns cantos da memória

sabe que o dia d só morre de morte temporária

ressuscitando cada vez que a palavra velha é pronunciada

por um acaso, numa escada, na rua, no autocarro

para de novo tornar-se palavra-passe

e percorrer as nossas vísceras

até olhamos para os lados

pelas dúvidas

porque assim como não podemos

desaprender as letras

ou as constelações

também depois dessas palavras

o céu nunca mais é o caos

e os caminhos nunca mais são inocentes

tsunami

um golpe de liberdade pode bater nas nossas caras com a força de um tsunami.

é preciso estar atentos aos sinais do mar, do céu.

é preciso perceber que os nossos sonhos são nossos e neles podemos criar o mundo.

é preciso saber que podemos escolher viajar ao lombo de um dragão que saiba ler o segundo prévio aos nossos pensamentos, esse espaço de nascença, o embrião do desejo.

é preciso recuperar o poder sobre leme que precede as palavras, esses cortes na realidade.

é preciso acreditar em nós, na vida aquém da nascença e o verbo.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

vidas grandes, vidas pequenas (II)

entrou na loja de roupas, precisava de deitar fora tudo o que lhe fazia lembrar o passado. nem sequer percebia como podia ter acreditado assim, piamente, como uma beata perante o padre, no que só era miragem. deve ser a sede que nos faz ver o que não há, caminhar até águas que nunca lá houve. talvez o oásis exista algures, mas com certeza não no lado do deserto que ela tinha transitado. avançou para a zona dos vestidos. nos últimos tempos tinha sido o desleixo, a roupa a transparecer a casa despejada que lhe ficara dentro, tudo entregue a umas mãos sem fundo. amar um nómada, que ideia louca. queria voltar para casa interior, a lareira do peito, a morada íntima que tinha perdido no meio dos papéis dos outros. do outro, aliás. silêncio. a voz era a dele, ao certo. nos altifalantes uma entrevista na rádio, um novo álbum, novas músicas. suspirou. nem sequer lhe restavam uns trocos de ódio que gastar com ele, coitado, não sabia mais. que tristeza precisar da dor para ganhar a vida, não há casa possível para os corações em trânsito. depois dos vestidos ela ia voltar a uma casa cheia de coisas pequenas, cozinha, loiça, conversas, abraços, perdão. depois dos microfones, ela sabia, havia apenas um hotel, um copo, uma garrafa de whisky.

vidas grandes, vidas pequenas

I

encheu o copo de novo. afinal, quem ia perceber. celebrava o concerto, tinha corrido bem. essas músicas novas estavam a funcionar como nos tempos antigos. lembrou-se dela nessa lentidão do álcool, o cansaço e a memória ingrata. coitada, mas ela pensara mesmo que aquilo podia dar certo? conheceram-se numa noite como aquela, num hotel como aquele. ou nem por isso, já nem se lembrava. continuava a espantá-lo a ingenuidade das pessoas. não era culpado de escrever canções, aquela beleza melancólica, aquelas relações inesperadas entre palavras hospedadas numa casa onde a madame era o whisky. quem manda os outros confundirem a arte e as pessoas, o cu com as calças? apesar de tudo tinha conseguido reviver as notas através do corpo e os gestos dela, aquela beleza calma nos olhos grandes, nas mãos de dedos longos. ele, que na altura começava a entrar na lotaria obscura do 'o que foi de...?', o cabelo grisalho como os últimos anos de insucesso. no entanto, a presença dela tinha ressuscitado qualquer coisa de vivo, ele que tentava há anos um suicídio lento, uma agonia interminável. aquelas canções tinham uma porção dela, coitada, sua inocente, acabara por fugir do lado dele, vazia de tanto se dar. mas de novo era a vez das perdas e os ganhos, dos efeitos colaterais, é sempre assim, inevitavelmente. onde estaria ela agora? esta vida grande, tem que ser... encheu o copo de novo. afinal, quem ia saber.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

COSMOAGONIA

Quem sabe se eram, tinham, sabiam.

Quem sabe ainda os deuses não tinham nascido para lhes dar nome, sempre com atraso, eles à espera, convocados para uma ceifa nos tempos em que ainda não havia cereais.

Quem sabe o que acontece aos primeiros que chegam, a vida ainda não era e quando é, é para se viver, talvez quando o tempo fosse inventado viessem outros para escrever, outros de mãos moles e ideias calejadas, revistas, tomadas da memória do que nunca foi escrito porque o tempo e o espaço não eram ainda possíveis nem necessários, quem sabe.

Quem sabe um dia já era tudo nascido e a mulher inventou-se para ser silêncio porque os gritos dos partos nunca foram belos.

Quem sabe depois ela disse que sim e queria dizer que não, ou não sabia ou queria era só dizer, porque dizer era estar, ser ou parecer, uma cópula de sintagmas que lhe devolvesse a nascença roubada, lhe levasse a dor condenada.

Quem sabe ela tinha sido antes uma coisa pousada por acaso, uma vontade vaga que de tanto anoitecer se tornou muda e de tão muda branca, e de tão branca lua ou luz de empréstimo, ou guia de escuridões que tudo dá no mesmo.

Quem sabe houve também uma outra coisa lançada de um passado eterno, uma noção de princípio que não foi, um sempre em frente inverso e infinito, um berço pronto para o embalo do relâmpago ao nascer.

Quem sabe não queria tornar-se ele mas que diabos estava na hora e os deuses com atraso como sempre, quem sabe daí a urgência, a decisão, o caminho aberto, o riso, e ainda a mão que rebenta dentre o nada e toca a pele branca, muda, lua.

Quem sabe por isso os deuses nunca mais chegavam e tiveram que inventar os nuncas e o sempre, criar o tempo e o sol porque era preciso comer qualquer coisa enquanto isso e trabalhar para comer e descansar para trabalhar, e o raio dos deuses que não apareciam, pouca vergonha.

Quem sabe foi preciso descansar e até morrer para deixar de esperar o que nunca tinha sido.

Quem sabe por isso a única cópula possível abandonou os sintagmas e brotou da necessidade e o que há-de ser de nós.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009




Lembrando Monet

sábado, 17 de outubro de 2009

chão vulcânico




fui eu que deixei o rasto verde na tua vegetação quando parti, tudo condensado numa praia vulcânica apesar que nunca procurei nada além do instante, nunca pediste nada além da presença. resta hoje o sonho cromático, a colagem das carícias e os lugares frequentados, as músicas ouvidas, essa arte intransponível, esse reino intraduzível das lembranças com cheiro a beijo, a wagner na veneza.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

qualquer coisa parecida com o medo



o medo. o medo deve ser muito parecido com isto. qualquer coisa que faz cócegas e vem de cima, sem sabermos ao certo de onde, para que, onde é que vai parar, o que é que é.

quando tenho medo

quando tenho medo não é quando temo o futuro, mas quando temo o passado.

quando tenho medo é do tempo em que acordar era o pesadelo, não do amanhecer de amanhã ou depois.

quando tenho medo, tenho medo mesmo quando sei que não conheço o que não conheço.

quando tenho medo, sei que sou criança tendo deixado a meninice.

quando tenho medo, tenho medo que me oiçam silenciar as vísceras.

quando tenho medo, combato até os anjos sem saber porquê.

quando tenho medo, sei que tenho medo.

quando tenho medo, tenho gosto de medo, tacto de medo, cheiro a medo, sinto a medo, sou o medo.

quando tenho medo.

quando sou cobarde
não sei que tenho medo.



quando olhei para cima teus pés tinham sumido. a escada parecia-me a tua garganta, o caminho à tua boca, talvez às tuas mãos, aos meus seios, porque não? nunca mais soube de ti. aliás, nunca soube de ti além dos pés e uma pergunta.

sábado, 10 de outubro de 2009



outúbrio azul

terça-feira, 6 de outubro de 2009

red § blue

A Joana procurava um lugar onde ser vista, brilhar, onde as cores do seu quotidiano anarquismo fossem qualquer coisa de especial. Encontrou o lugar entre os azuis. Sem escárnio.



Toda a grade tem ao pé dela um frasco de bebe-me que nos conduz ao outro lado

Sonata para André

ALVORECER NA JANELA

Mamã
na ponta dos teus dedos nasce a formiga
que percorre as minhas costas de manhã

mamã
coça-me as costas um poucochinho mais

mamã
cresce-me um formigueiro na espinha para receber o dia
que todos nós somos também formigas
e acordamos o sol com passos leves

mamã
escolhe-me formigas que transportem manteiga derretida
e vira-me cócegas os braços
os abraços de bom dia
enquanto o sol se pousa nas pálpebras fechadas
ainda

pousa-me uma formiga de sol
mamã
como um raio de luz suspensa
que me faça esquecer que este mundo
não gosta de crianças

que me faça lembrar que este mundo
um dia nos devolverá o riso
preso no país das esperanças

mamã
coça-me as costas um poucochinho mais
mamã

domingo, 4 de outubro de 2009

nadar com lua nova

nadar com lua nova como dançar em areias movediças

ser uma peça necessária como encontrar as noites extirpadas

saciar a fome de outros olhos como beber o pântano

saltar ao vazio e encontrar o outro lado do espelho

sentir dor da árvore desejada

vestir-se a coragem dos loucos

tocar com mãos de alejandra pisar com pés de alfonsina

habitar outra planície: abrir as portas do jardim no ocaso

pisar-me a erva dos dentes e rangê-la até eclodir: viver-me

recuperar as palavras amputadas

deixar-me crescer até parir Antares

decidir uma luz no crepúsculo

nascer-me

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

quién es

leo en el diálogo:

“yo:”
y me marea

tan lejos estoy de MÍ
¿quién es YO?

es la que se equivocó
es la que se zambulló
es la que fue madre
la ingenua soñadora
la que es
la que sueña qué es
la que sueña qué será
la que será

es la que escribía y se murió
es la que regresaba y nació
todas ellas?
ninguna?

todos?
nadie?

ayer?
mañana?

nada
la nada que quedará después de este segundo breve
el adiós inerte
que ya no es

sí!
esta soy,
entregada al NO,
desposeída del yo,
limpia de deseo,
clara de empeño,
transparente de risa,
cristalina de agua,
atravesada de vida:
nadie,
tú,
el instante.
ya.
no.
se fue.
desnudas
nos hemos paseado
por los meandros fríos del dolor

las aguas del pasado
los milenios precedentes
ensuciaron tantas veces nuestro curso
la culpa ese presente olvidado
ese poso oscuro
que discurre lento espeso ajeno
a las corrientes que proceden del deshielo
gestado en el tiempo lejano
en que nuestras madres decidieron
en algún lugar aún oculto
en su taimado pensamiento
darnos las alas
concedernos los ojos las voces los gestos los deseos
que durante tantos años
habían escondido bajo el suelo
bajo el sumiso humus del silencio

no pudieron
nuestras madres
lucir su joya fue por eso
que no pudimos de ellas
aprender los dedos

pero la guardaron preservaron trasladaron
limpia audaz tentadora a nuestras manos

así pues
por ellas por nosotras mismas
pero también por nuestras hijas
se nos podrán caer los anillos en pos del deseo
pero nunca nunca nunca
volverá la memoria o la palabra
a caer al suelo

continuidad de los para qués

convocarte
para que me sacies el hambre de los labios
abiertos para que te mire con ojos de pez
adiestrado para abrir su boca en melodía
callada para no importunar la sinfonía de tus manos
lentas para no quebrar la porcelana de mis sueños
pospuestos para ceder el paso a tu ánimo
áspero para que no te lancinen los envites del pasado
olvidado para que no te duelan los tobillos al desandar los tiempos
idos para dejar lugar a dudas gritos preguntas con espuelas
clavadas en el pozo de mi lengua
concebida única exclusivamente para
convocarte