quinta-feira, 29 de outubro de 2009

COSMOAGONIA

Quem sabe se eram, tinham, sabiam.

Quem sabe ainda os deuses não tinham nascido para lhes dar nome, sempre com atraso, eles à espera, convocados para uma ceifa nos tempos em que ainda não havia cereais.

Quem sabe o que acontece aos primeiros que chegam, a vida ainda não era e quando é, é para se viver, talvez quando o tempo fosse inventado viessem outros para escrever, outros de mãos moles e ideias calejadas, revistas, tomadas da memória do que nunca foi escrito porque o tempo e o espaço não eram ainda possíveis nem necessários, quem sabe.

Quem sabe um dia já era tudo nascido e a mulher inventou-se para ser silêncio porque os gritos dos partos nunca foram belos.

Quem sabe depois ela disse que sim e queria dizer que não, ou não sabia ou queria era só dizer, porque dizer era estar, ser ou parecer, uma cópula de sintagmas que lhe devolvesse a nascença roubada, lhe levasse a dor condenada.

Quem sabe ela tinha sido antes uma coisa pousada por acaso, uma vontade vaga que de tanto anoitecer se tornou muda e de tão muda branca, e de tão branca lua ou luz de empréstimo, ou guia de escuridões que tudo dá no mesmo.

Quem sabe houve também uma outra coisa lançada de um passado eterno, uma noção de princípio que não foi, um sempre em frente inverso e infinito, um berço pronto para o embalo do relâmpago ao nascer.

Quem sabe não queria tornar-se ele mas que diabos estava na hora e os deuses com atraso como sempre, quem sabe daí a urgência, a decisão, o caminho aberto, o riso, e ainda a mão que rebenta dentre o nada e toca a pele branca, muda, lua.

Quem sabe por isso os deuses nunca mais chegavam e tiveram que inventar os nuncas e o sempre, criar o tempo e o sol porque era preciso comer qualquer coisa enquanto isso e trabalhar para comer e descansar para trabalhar, e o raio dos deuses que não apareciam, pouca vergonha.

Quem sabe foi preciso descansar e até morrer para deixar de esperar o que nunca tinha sido.

Quem sabe por isso a única cópula possível abandonou os sintagmas e brotou da necessidade e o que há-de ser de nós.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009




Lembrando Monet

sábado, 17 de outubro de 2009

chão vulcânico




fui eu que deixei o rasto verde na tua vegetação quando parti, tudo condensado numa praia vulcânica apesar que nunca procurei nada além do instante, nunca pediste nada além da presença. resta hoje o sonho cromático, a colagem das carícias e os lugares frequentados, as músicas ouvidas, essa arte intransponível, esse reino intraduzível das lembranças com cheiro a beijo, a wagner na veneza.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

qualquer coisa parecida com o medo



o medo. o medo deve ser muito parecido com isto. qualquer coisa que faz cócegas e vem de cima, sem sabermos ao certo de onde, para que, onde é que vai parar, o que é que é.

quando tenho medo

quando tenho medo não é quando temo o futuro, mas quando temo o passado.

quando tenho medo é do tempo em que acordar era o pesadelo, não do amanhecer de amanhã ou depois.

quando tenho medo, tenho medo mesmo quando sei que não conheço o que não conheço.

quando tenho medo, sei que sou criança tendo deixado a meninice.

quando tenho medo, tenho medo que me oiçam silenciar as vísceras.

quando tenho medo, combato até os anjos sem saber porquê.

quando tenho medo, sei que tenho medo.

quando tenho medo, tenho gosto de medo, tacto de medo, cheiro a medo, sinto a medo, sou o medo.

quando tenho medo.

quando sou cobarde
não sei que tenho medo.



quando olhei para cima teus pés tinham sumido. a escada parecia-me a tua garganta, o caminho à tua boca, talvez às tuas mãos, aos meus seios, porque não? nunca mais soube de ti. aliás, nunca soube de ti além dos pés e uma pergunta.

sábado, 10 de outubro de 2009



outúbrio azul

terça-feira, 6 de outubro de 2009

red § blue

A Joana procurava um lugar onde ser vista, brilhar, onde as cores do seu quotidiano anarquismo fossem qualquer coisa de especial. Encontrou o lugar entre os azuis. Sem escárnio.



Toda a grade tem ao pé dela um frasco de bebe-me que nos conduz ao outro lado

Sonata para André

ALVORECER NA JANELA

Mamã
na ponta dos teus dedos nasce a formiga
que percorre as minhas costas de manhã

mamã
coça-me as costas um poucochinho mais

mamã
cresce-me um formigueiro na espinha para receber o dia
que todos nós somos também formigas
e acordamos o sol com passos leves

mamã
escolhe-me formigas que transportem manteiga derretida
e vira-me cócegas os braços
os abraços de bom dia
enquanto o sol se pousa nas pálpebras fechadas
ainda

pousa-me uma formiga de sol
mamã
como um raio de luz suspensa
que me faça esquecer que este mundo
não gosta de crianças

que me faça lembrar que este mundo
um dia nos devolverá o riso
preso no país das esperanças

mamã
coça-me as costas um poucochinho mais
mamã

domingo, 4 de outubro de 2009

nadar com lua nova

nadar com lua nova como dançar em areias movediças

ser uma peça necessária como encontrar as noites extirpadas

saciar a fome de outros olhos como beber o pântano

saltar ao vazio e encontrar o outro lado do espelho

sentir dor da árvore desejada

vestir-se a coragem dos loucos

tocar com mãos de alejandra pisar com pés de alfonsina

habitar outra planície: abrir as portas do jardim no ocaso

pisar-me a erva dos dentes e rangê-la até eclodir: viver-me

recuperar as palavras amputadas

deixar-me crescer até parir Antares

decidir uma luz no crepúsculo

nascer-me

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

quién es

leo en el diálogo:

“yo:”
y me marea

tan lejos estoy de MÍ
¿quién es YO?

es la que se equivocó
es la que se zambulló
es la que fue madre
la ingenua soñadora
la que es
la que sueña qué es
la que sueña qué será
la que será

es la que escribía y se murió
es la que regresaba y nació
todas ellas?
ninguna?

todos?
nadie?

ayer?
mañana?

nada
la nada que quedará después de este segundo breve
el adiós inerte
que ya no es

sí!
esta soy,
entregada al NO,
desposeída del yo,
limpia de deseo,
clara de empeño,
transparente de risa,
cristalina de agua,
atravesada de vida:
nadie,
tú,
el instante.
ya.
no.
se fue.
desnudas
nos hemos paseado
por los meandros fríos del dolor

las aguas del pasado
los milenios precedentes
ensuciaron tantas veces nuestro curso
la culpa ese presente olvidado
ese poso oscuro
que discurre lento espeso ajeno
a las corrientes que proceden del deshielo
gestado en el tiempo lejano
en que nuestras madres decidieron
en algún lugar aún oculto
en su taimado pensamiento
darnos las alas
concedernos los ojos las voces los gestos los deseos
que durante tantos años
habían escondido bajo el suelo
bajo el sumiso humus del silencio

no pudieron
nuestras madres
lucir su joya fue por eso
que no pudimos de ellas
aprender los dedos

pero la guardaron preservaron trasladaron
limpia audaz tentadora a nuestras manos

así pues
por ellas por nosotras mismas
pero también por nuestras hijas
se nos podrán caer los anillos en pos del deseo
pero nunca nunca nunca
volverá la memoria o la palabra
a caer al suelo

continuidad de los para qués

convocarte
para que me sacies el hambre de los labios
abiertos para que te mire con ojos de pez
adiestrado para abrir su boca en melodía
callada para no importunar la sinfonía de tus manos
lentas para no quebrar la porcelana de mis sueños
pospuestos para ceder el paso a tu ánimo
áspero para que no te lancinen los envites del pasado
olvidado para que no te duelan los tobillos al desandar los tiempos
idos para dejar lugar a dudas gritos preguntas con espuelas
clavadas en el pozo de mi lengua
concebida única exclusivamente para
convocarte