quarta-feira, 4 de novembro de 2009

vidas grandes, vidas pequenas

I

encheu o copo de novo. afinal, quem ia perceber. celebrava o concerto, tinha corrido bem. essas músicas novas estavam a funcionar como nos tempos antigos. lembrou-se dela nessa lentidão do álcool, o cansaço e a memória ingrata. coitada, mas ela pensara mesmo que aquilo podia dar certo? conheceram-se numa noite como aquela, num hotel como aquele. ou nem por isso, já nem se lembrava. continuava a espantá-lo a ingenuidade das pessoas. não era culpado de escrever canções, aquela beleza melancólica, aquelas relações inesperadas entre palavras hospedadas numa casa onde a madame era o whisky. quem manda os outros confundirem a arte e as pessoas, o cu com as calças? apesar de tudo tinha conseguido reviver as notas através do corpo e os gestos dela, aquela beleza calma nos olhos grandes, nas mãos de dedos longos. ele, que na altura começava a entrar na lotaria obscura do 'o que foi de...?', o cabelo grisalho como os últimos anos de insucesso. no entanto, a presença dela tinha ressuscitado qualquer coisa de vivo, ele que tentava há anos um suicídio lento, uma agonia interminável. aquelas canções tinham uma porção dela, coitada, sua inocente, acabara por fugir do lado dele, vazia de tanto se dar. mas de novo era a vez das perdas e os ganhos, dos efeitos colaterais, é sempre assim, inevitavelmente. onde estaria ela agora? esta vida grande, tem que ser... encheu o copo de novo. afinal, quem ia saber.

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