desdobro as folhas do cardápio
em que cada manhã se me apresenta a vida
com a disciplina própria de um mestre zen
cada dedo agente total do movimento
esse quê de lentidão que aproxima a elegância e a velhice
a consciência dos membros
o mimo ao cortar o ar das estâncias que atravesso
a caminho do duche e o pequeno-almoço
sento na cozinha em calma e penso que
pouco ou nada resta daquela falta de jeito
com que tomava chá e decisões
deitando líquido no tapete ou engasgando com a torrada
escorregando nos casamentos ou nas casas habitadas
onde sempre andei nua, descalça e sem licença
perdi o jeito para as quedas, é verdade
nomeadamente em grupo e com data fixada num cartório
em troca ganhei em solidão, noites, letras e amizades fracas.
agora tento apenas manter a disciplina do sossego
e um breve inventário de recusas
reunido com a licença que me dão os anos:
recuso-me por igual a
chorar passados e perseguir submarinos
calar os erros e ignorar os dons
aguentar até ao fim uma tarde ao sol e uma má leitura
tratar gente sem olfacto para fronteiras e deitar pérolas aos porcos
tratar da chuva no Verão e dar conselhos a quem não pediu
recuso-me também por razões de ordem maior
a procurar palavras que substituam murros
derrubar muros que nunca lá houve
caçar borboletas, adoptar cães vadios
e trocar fraldas a crescidos.
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Silvia! Que coisa esplendorosa é este teu jeito com as palavras! Meu Deus!
ResponderEliminar"...e trocar fraldas a crescidos."
Como estou aprendendo a me poetizar por aqui. Obrigado, Mulher, obrigado! Cristiano Siqueira.