quarta-feira, 4 de novembro de 2009

vidas grandes, vidas pequenas (II)

entrou na loja de roupas, precisava de deitar fora tudo o que lhe fazia lembrar o passado. nem sequer percebia como podia ter acreditado assim, piamente, como uma beata perante o padre, no que só era miragem. deve ser a sede que nos faz ver o que não há, caminhar até águas que nunca lá houve. talvez o oásis exista algures, mas com certeza não no lado do deserto que ela tinha transitado. avançou para a zona dos vestidos. nos últimos tempos tinha sido o desleixo, a roupa a transparecer a casa despejada que lhe ficara dentro, tudo entregue a umas mãos sem fundo. amar um nómada, que ideia louca. queria voltar para casa interior, a lareira do peito, a morada íntima que tinha perdido no meio dos papéis dos outros. do outro, aliás. silêncio. a voz era a dele, ao certo. nos altifalantes uma entrevista na rádio, um novo álbum, novas músicas. suspirou. nem sequer lhe restavam uns trocos de ódio que gastar com ele, coitado, não sabia mais. que tristeza precisar da dor para ganhar a vida, não há casa possível para os corações em trânsito. depois dos vestidos ela ia voltar a uma casa cheia de coisas pequenas, cozinha, loiça, conversas, abraços, perdão. depois dos microfones, ela sabia, havia apenas um hotel, um copo, uma garrafa de whisky.

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